A Memória da Tuna: Throwback com Eduardo Coelho, em 2009
09-11-2023
Por estes dias, muito se tem falado da importância do estudo do fenómeno tuna.
Parece que a preocupação não é só de hoje nem exclusiva de alguns. A julgar pelo muito que se tem debatido no fórum do Ptunas - e sobre os mais diversos aspectos –, dos aprendizes, passando pelos oficiais e terminando nos mestres, a corporação dos tunos manifesta, de forma geral, interesse em conhecer. Alguns, mais raros, manifestam interesse em saber. Outros ainda, e ainda mais raros, procura saber mais.
Resta determinar: saber o quê? De que se anda à procura? E, ponto mais importante: «saber» para fazer o quê com esse conhecimento? Contudo, o que parece andar arredado dos espíritos é que nós só podemos vir a saber (futuro) aquilo que já se fez (passado). Estamos, assim, dependentes das fontes... ou falta delas. Ou falta delas. E já nem é só a nível de quantidade: a qualidade é também um factor primordial. Boa ou má, é a que existe, e é só com base nessas mesmas fontes que se pode interpretar o passado.
Não é possível ressuscitar os protagonistas, nem interrogá-los através de um copo, para que a verdade que nos chega do passado possa ser confirmada/infirmada. Basta pensarmos que, regra geral, as fontes não são de primeira-mão: isto é, raros foram os protagonistas que nos deixaram testemunhos directos (escritos, fotografados) das suas vivências/motivações. De uma forma geral, são terceiros (jornalistas, cronistas, romancistas, simples espectadores) quem nos abre uma janela sobre esses momentos.
Assim, há que contar com uma certa dose de distorção – da mais maldosa à mais inocente – na consulta das fontes históricas. Quantas vezes não são os autores dos documentos quem atribui a si próprios a paternidade de filhos que não tiveram? Quantas vezes não são a inveja, a malevolência e a rivalidade mesquinha a escrever, a filtrar, a ocultar, ou, pelo contrário, o partidarismo, a realçar, a pôr em evidência (e a ocultar, também) os aspectos mais positivos ou mais negativos (conforme os casos) deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela instituição?
Mesmo assim, a janela, a pintura, a fotografia, a radiografia só nos deixam ver aquilo que está enquadrado pelo obturador do pensamento de quem as revelou, produziu, retocou, ampliou, recortou, segmentou, colou, coloriu. Falou-se de passado e futuro. Então e o presente? Tão importante como a procura das fontes do passado é a criação/preservação de fontes para o futuro. Este é o grande trabalho do presente e o melhor património que podemos legar às gerações vindouras: a memória.
Mas uma memória tal como cada um de nós a possui: com os bons e os maus momentos; com as alegrias e as fustrações; com o que nos faz estourar de orgulho e corar de vergonha no mais íntimo de nós próprios. Na esmagadora maioria dos casos – se não em todos os casos - , as tunas preocupam-se mais com a sua actividade do que com a preservação da memória dessas actividades. Há magisteres, secretários, bispos, freiras, cavaleiros, noviços... enfim, títulos para todos os gostos. O que não há é... arquivistas com essa função específica e bem definida, nem me parece que esse aspecto seja particularmente valorizado.
É importante que cada Tuna-instituição, cada tunante, por si só, dê o seu contributo: preserve a sua própria memória. E neste particular cabe desde já uma palavra de apreço ao PortugalTunas pelo trabalho que tem vindo a fazer. Ao proporcionar esta plataforma de (des)encontro entre os intervenientes, ao permitir a livre exposição (alguns dirão que não) de pontos de vista, relatos de experiência, discussões por vezes azedas, está já a constituir um dos mais preciosos acervos documentais a que o futuro há-de ter acesso.
O que nos traz de volta às questões iniciais: saber para quê? Que fazer com esse saber? Há quem queira estudar o passado sob todas as suas vertentes, as luminosas e as sombrias, apenas com o objectivo de saber quem é e donde veio; por que se faz assim ou assado – ou que sentido faz hoje continuar a fazer-se assim ou assado. Contudo, para muitos outros, o primeiro grande objectivo do estudo do passado é a procura de legitimidade para os comportamentos presentes – particularmente quando esses comportamentos não são legítimos.
Hitler desencantou uma raça ariana. Mussolini tentou reconstituir o Império Romano. Salazar virou-se para a Lusitânia. João Baptista da Silva Leitão acrescentou aos seus apelidos «de Almeida Garrett» (com dois «tt» é mais fino). A Sr.ª Maria descobriu que já uma madrinha da sua tia Alzira tinha a bancada de peixe no Bolhão desde o tempo dos Descobrimentos... e por aí adiante.
Quantas guerras, evangelizações, pretensões, heranças, direitos, foram reclamados, justificados, declarados, exigidos em nome de um qualquer passado mal amanhado por entre duas nesgas de papel colado com cuspe e ao qual se deu o nome pomposo de investigação histórica?
Estes são sempre os mais interessados em que se estude o passado – ou melhor um passado que seja feito à medida das respectivas conveniências. Curiosamente, são, regra geral, os que não possuem passado nenhum. É esta busca desenfreada da legitimização que faz com que se veja por vezes aquilo que não está escrito, fotografado, num exercício de reconstrução do que não foi captado pela objectiva ou do que está escrito nas entrelinhas.
E de uma forma tão ruidosa que faz com que se invertam completamente os valores: isto é, que se ignore o que está no papel e se dê toda a importância ao que lá não está. Saber, sim: mas... saber para quê?
Abraço e BOA MÚSICA!
Eduardo Coelho